domingo, 9 de abril de 2006

Estreia

A Internet tem este poder de nos induzir a ter atitudes e reacções pouco reflectidas, e esta é uma delas... Ter um blog, não sabendo bem porquê nem para quê.

Convido-vos a enviarem-me tudo aquilo que gostariam de ver publicado no mundo cibernético, a criarem debates interessantes, a tornarem o mundo mais pleno de poesia e sol.

Here we go...

A Vingança do Esquecimento


- Também lá estavas?
- Estava.
Os murmúrios prolongavam-se, passo a passo, na cidade.
- Tu também?
- Sim.
As palavras eram poucas e incoerentes. Paravam e, sem que o murmúrio fosse alterado, retomavam o andar meticuloso e determinado. A noite atribuía a todos estes movimentos uma lentidão insuportável e sem destino.
- Foi ontem?
- Não. Foi hoje. Já não te lembras?
- Não.
Curiosamente, todos os que se cruzavam trocavam curtas recordações que já não conseguiam explicar, e que esqueciam segundos depois. O peso do esquecimento curvava-os para a frente, tornava-os soturnos e absorvidos pela escuridão.
- Tens tempo?
- Não. Perdi-o.
O nexo das coisas já não permanecia nelas. Será que foi essa a palavra roubada? O nexo? A resposta não chegava e, enquanto que todos erravam seguindo os pés iluminados pela pouca luz que a lua projectava, um, apenas, ria. Usava luvas brancas manchadas de vermelho e ria, observando o ritual seguido pelos homens e mulheres que se interpelavam e se afastavam, que se lembravam e esqueciam, que caminhavam sem rumo, como quem não caminha, porque nada procuram, nada encontram e nada vivem, num tempo que para eles não tem fim. Mas o homem de luvas brancas manchadas de vermelho distinguia-se não só pela crueldade do seu riso, que irrompia no meio do murmúrio constante e púdico, como também pela sua postura sóbria e espontânea, pelo seu rosto puro, transparente, pela contemplação lúcida que tinha do cenário que presenciava.

- Ainda falas?
- .
A sua gargalhada aumentou de volume ao ver que até a fala e a voz começavam a falhar. “E eu ainda falo para mim mesmo!”, dizia para si mesmo, e ria. A sua consciência mantinha-se intacta e capaz de ironia, louca lucidez naquele pântano humano. Prevenido, o inesperado não o surpreendeu.
Agora, todos se cruzavam, mas nenhum deles falava nem ouvia. Os seus olhares perfuravam o visível e entravam para a dimensão neónica; observavam a morte e regressavam aos seus passos compassados. O murmúrio tinha-se reduzido a um sapateado agoniante.
Alguém usurpou o sentido conferido ao mundo. Alguém apagou as palavras dos livros, guardando-as para si, já que ninguém lhes ligava mesmo. Escritas e esquecidas em páginas vermelhas, encarnavam a solidão ensanguentada vivida num outro real, na aventura pelo mundo do não-lido e do pó acumulado. A última palavra tinha sido apagada há pouco.
O homem de luvas brancas manchadas de vermelho escondia um objecto debaixo do seu casaco amarfanhado. Cruzava os braços para ter a certeza que nada o iria separar dele. Era uma escultura em metal enferrujado construída com letras recortadas, que se amontoavam em forma de garrafa, edificada como se ascendesse a Babel. Dentro dela, distinguiam-se enes, és, xis e ós escritos em papel vermelho, letras infinitas de ex-sentido, de ex-organização, de ex-mundo.
O sol não voltou depois da madrugada. Os vultos deixavam-se cair no chão entrando num sono profundo e sem retorno. O mundo foi levado a cabo mais cedo do que o previsto. A letra, as letras, a palavra escrita. Todas guardadas por um homem que sujou as luvas ao recortá-las dos livros encafuados em estantes inacessíveis. Ou será que era sangue?
O homem de luvas vermelhas tomba no chão e deixa cair a garrafa do saber. Aproveitou os segundos de vida que lhe restaram para a observar a rolar no chão sem intenções de parar.
Perdendo-a de vista, o homem desfalece e junta-se ao sono profundo dos vultos.


Nadia Sales Grade